09/08/2020

A PROPÓSITO DO DIA DOS PAIS E DA LEITURA

Não nascemos sabendo ler nem gostando de ler, mas aprendemos essa prática junto com muita coisa em nossa vida. A família, como agente de socialização, tem um papel relevante nesse processo, repercutindo de forma decisiva em nossa educação escolar. Aprendi na universidade que o sociólogo francês Pierre Bourdieu falava em capital cultural e insistiu no fato de que as desigualdades sociais são reproduzidas pela educação escolarizada. Considerando as minhas origens sociais, a conclusão preliminar a que cheguei foi de que estar ali, na universidade e ter desenvolvido tanto gosto por ler não era a regra. Explico.

Venho de uma família de parcos recursos financeiros da periferia de Fortaleza. Meus pais são oriundos do interior do Ceará, mais precisamente de Limoeiro do Norte. Eles nunca chegaram a concluir sequer o ensino fundamental. Meu pai trabalhava duro para sustentar a família e minha mãe se encarregava das tarefas da casa e  de educar, além dos filhos, cunhados mais novos e sobrinhas. Todo esse pessoal foi parar na escola, apesar de todas as dificuldades, pelos esforços dos meus pais.

Meu pai era um trabalhador braçal, carregador de malas no antigo Aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza-CE.  Ele trabalhava um dia e descansava no outro. Saía em uma madrugada e voltava na outra. O desgaste dessa atividade custou caro para a sua saúde. Em casa, lembro que dormia boa parte do tempo, não era de conversar muito, fazia algum ou outro reparo doméstico, engraxava e consertava os próprios sapatos (sempre brilhantes), saía para fazer algumas compras  e, no final da tarde, tomava uma dose de cachaça na bodega do seu Zequinha. No meio dessa rotina havia uma pausa para dar uma olhada em  algum dos jornais que trazia.

Costumo dizer aos meus alunos que meu pai foi a minha Internet. Por trabalhar no aeroporto, meu pai tinha acesso a jornais e revistas que vinha de todo país (de S. Paulo, por exemplo, a Folha e o Estadão, eram constantes) e até de outros países. Ele pedia exemplares ao pessoal da manutenção dos aviões ou aos passageiros, recolhendo também os que eram descartados no saguão. Quando ele chegava em casa de madrugada, junto com o pão quentinho embrulhado em papelão e amarrado com um cordão, trazia uma carga de jornais e revistas, que eram disputados pelos meus irmãos (“revista é minha, jornal eu leio primeiro”, dizia o Jota, o mais velho dos meus irmãos). Periodicamente, também, comprava romances para minha mãe ler. No meu caso, inicialmente, restavam-me os cadernos e os encartes para criança, que muito me interessavam.

Meus irmãos foram partindo um a um para outros estados por razões diversas, mas fiquei com meus pais e  passei a ser o principal destinatário dos jornais e revistas com o decorrer do tempo. Também me apropriei de boa parte dos livros de ficção científica do Jota que haviam ficado em casa. Além disso, ao ficar com a tarefa de levar a marmita com o almoço do meu pai, procurava economizar passagens de ônibus para poder comprar livros de bolso. Assim, em linhas gerais, foi que começou a ser construído meu interesse e gosto pela leitura.

Pude refletir melhor o meu acesso à universidade quando li “Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável”, de Bernard Lahire, que construiu suas reflexões sociológicas contra e a favor de Bourdieu.  Percebi que há diversos fatores que podem fazer com que determinadas condições objetivas  sejam superadas para que as pessoas avancem no seu processo de escolarização. Eu já havia aprendido na prática que minhas origens sociais não representavam a palavra final sobre meu destino escolar.

Meu pai faleceu há 20 anos e, infelizmente, não conseguiu me ver chegando ao Mestrado nem ao Doutorado. Lembro-me dele mais fortemente no dia do meu aniversário  e no dia dos pais. Tenho muitas razões para agradecer a Deus pelo pai que tive e sempre serei grato por tudo o que ele me propiciou, sobretudo por ter contribuído para que eu adquirisse as disposições necessárias para viver o mundo da leitura.

2 comentários:

  1. Gratidão é um dos mais nobres e preciosos sentimentos. E, ampliando o olhar para o sermos este ser humano na sua totalidade, posso dizer que ele continua a viver nas suas ações, nos valores adquiridos, no precioso gosto partilhado pela leitura. Sim, porque ao chegar com os livros, revistas ele já os havia lido; lido com outros olhos, de outra forma. A leitura é ampla, e só conseguimos ler, quando nos colocamos frente as aplicações dela para nós, os outros, o mundo. E, ele sabia o impacto daquele precioso material que levava para vocês. Hoje, ele o vê, e quanto orgulho, por certo. Magnífico relato do vivido. Só conseguimos ler, quando aprendemos que a leitura é muito vasta, e nesta imensidão aprendemos a Ler o Mundo! E, assim, concordo com você e discordo de Bourdieu, o capital cultural, emerge nesta leitura de mundo também. Obrigada pela partilha.

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  2. Parabéns pela trajetória Napoleão. Bourdieu e Lahire também me instigam compreender minha própria trajetória na universidade.

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