Não nascemos sabendo ler nem gostando de ler, mas aprendemos
essa prática junto com muita coisa em nossa vida. A família, como agente de
socialização, tem um papel relevante nesse processo, repercutindo de forma decisiva
em nossa educação escolar. Aprendi na universidade que o sociólogo francês
Pierre Bourdieu falava em capital cultural e insistiu no fato de que as
desigualdades sociais são reproduzidas pela educação escolarizada. Considerando
as minhas origens sociais, a conclusão preliminar a que cheguei foi de que estar
ali, na universidade e ter desenvolvido tanto gosto por ler não era a regra. Explico.
Venho de uma família de parcos recursos financeiros da periferia
de Fortaleza. Meus pais são oriundos do interior do Ceará, mais precisamente de
Limoeiro do Norte. Eles nunca chegaram a concluir sequer o ensino fundamental.
Meu pai trabalhava duro para sustentar a família e minha mãe se encarregava das
tarefas da casa e de educar, além dos
filhos, cunhados mais novos e sobrinhas. Todo esse pessoal foi parar na escola,
apesar de todas as dificuldades, pelos esforços dos meus pais.
Meu pai era um trabalhador braçal, carregador de malas no
antigo Aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza-CE. Ele trabalhava um dia e descansava no outro. Saía em
uma madrugada e voltava na outra. O desgaste dessa atividade custou caro para a
sua saúde. Em casa, lembro que dormia boa parte do tempo, não era de conversar
muito, fazia algum ou outro reparo doméstico, engraxava e consertava os
próprios sapatos (sempre brilhantes), saía para fazer algumas compras e, no final da tarde, tomava uma dose de
cachaça na bodega do seu Zequinha. No meio dessa rotina havia uma pausa para
dar uma olhada em algum dos jornais que
trazia.
Costumo dizer aos meus alunos que meu pai foi a minha
Internet. Por trabalhar no aeroporto, meu pai tinha acesso a jornais e revistas
que vinha de todo país (de S. Paulo, por exemplo, a Folha e o Estadão, eram constantes) e até de outros países. Ele pedia exemplares ao pessoal da manutenção dos aviões ou aos passageiros, recolhendo também os que eram descartados no saguão. Quando ele chegava em casa
de madrugada, junto com o pão quentinho embrulhado em papelão e amarrado com um cordão, trazia uma carga de jornais e revistas, que
eram disputados pelos meus irmãos (“revista é minha, jornal eu leio primeiro”,
dizia o Jota, o mais velho dos meus irmãos). Periodicamente, também, comprava
romances para minha mãe ler. No meu caso, inicialmente, restavam-me os cadernos
e os encartes para criança, que muito me interessavam.
Meus irmãos foram partindo um a um para outros estados por
razões diversas, mas fiquei com meus pais e passei a ser o principal destinatário dos
jornais e revistas com o decorrer do tempo. Também me apropriei de boa parte dos livros de ficção
científica do Jota que haviam ficado em casa. Além disso, ao ficar com a tarefa de levar a marmita com o
almoço do meu pai, procurava economizar passagens de ônibus para poder comprar
livros de bolso. Assim, em linhas gerais, foi que começou a ser construído meu interesse
e gosto pela leitura.
Pude refletir melhor o meu acesso à universidade
quando li “Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável”, de
Bernard Lahire, que construiu suas reflexões sociológicas contra e a favor de
Bourdieu. Percebi que há diversos
fatores que podem fazer com que determinadas condições objetivas sejam superadas para que as pessoas avancem no
seu processo de escolarização. Eu já havia aprendido na prática que minhas
origens sociais não representavam a palavra final sobre meu destino escolar.
Meu
pai faleceu há 20 anos e, infelizmente, não conseguiu me ver chegando ao
Mestrado nem ao Doutorado. Lembro-me dele mais fortemente no dia do meu
aniversário e no dia dos pais. Tenho
muitas razões para agradecer a Deus pelo pai que tive e sempre serei grato por
tudo o que ele me propiciou, sobretudo por ter contribuído para que eu
adquirisse as disposições necessárias para viver o mundo da leitura.